Alain em Paris: A LOUCURA VAI AO LOUVRE

A exposição revela as diferentes facetas e a importância do louco, que deixou de ser uma figura marginal no século 13 para se tornar onipresente no século 16. Em cartaz até fevereiro!   

POR ALAIN ROUSSEAU

As notícias de arte deste outono estão sendo escritas no… Museu do Louvre.

Sim, o Museu da Mona Lisa e da Vitória de Samotrácia está apresentando uma nova exposição sobre os loucos, Figures du fou, Du Moyen Âge aux Romantiques (Figuras do Louco, da Idade Média aos Românticos), um bom motivo para ir ou voltar ao maior museu do mundo.

A exposição, em cartaz até fevereiro de 2025, não retrata a história da loucura como uma doença mental, mas analisa a onipresença dos loucos na arte e na cultura ocidentais desde o final da Idade Média até o período romântico do século 19, com o Quasímodo de Notre Dame de Paris ou o Rigoletto de Verdi.

UM LOUCO SIM, MAS QUAL LOUCO?

Quadro exposto no Louvre Fotos Alain Rousseau

A língua francesa usa um único termo fou (louco), para descrever uma ampla gama de pessoas diferentes: o simplório, o doente, o bufão. A exposição explora essas diferentes facetas e a crescente importância do louco, que deixou de ser uma figura marginal no século 13 para se tornar uma figura onipresente no século 16.   

 ORIGENS DO LOUCO

Originalmente enraizado no pensamento religioso, como a personificação do “tolo” que rejeitava Deus, o louco floresceu no mundo secular, tornando-se uma figura essencial na vida social urbana no final da Idade Média, especialmente nas irmandades e nos carnavais, até sua encarnação na corte na pessoa do “louco do rei”. 

Essas criaturas estranhas, híbridas e grotescas – conhecidas como marginália – apareceram pela primeira vez em manuscritos, ao lado de textos sagrados e seculares. Originárias do mundo das fábulas, provérbios ou fantasia, essas pequenas figuras que dançam nas margens laterais ou inferiores parecem brincar com o espaço da página e do texto, agarrando-se à folhagem ou aninhando-se nas iniciais. Geralmente cômicas, paródicas, às vezes escatológicas ou eróticas, elas parecem estar ali para divertir o leitor e oferecer um contraponto a um texto (muito) sério.

SÍMBOLO DA LUXÚRIA

Quadro O velho amoroso, exposto no Louvre

Na literatura cortês, o jardim é o lugar por excelência para o encontro dos amantes. Mas, com o desenvolvimento da gravura no século 15, um novo personagem entrou no jardim do amor: o louco, cuja figura esganiçada e gestos, muitas vezes, obscenos reduziam o amor à luxúria. Um personagem lascivo, ele se tornou o símbolo da luxúria. As gravuras serviram de modelo para todos os tipos de mídia: ourives, artistas de vitrais e objetos do cotidiano foram todos invadidos por esse louco sarcástico. Ele denunciou a luxúria dos velhos tolos que se deixavam seduzir por jovens mulheres que queriam seu dinheiro, assim como a luxúria dos homens mais jovens que se deixavam levar pela devassidão em cabanas de suor ou casas públicas, como o filho pródigo da parábola.

O LOUCO NA CORTE 

Quadro Galinha chocando tolos

A tradição bíblica exalta a sabedoria do rei Salomão. Na Idade Média, imaginava-se que ele tinha um louco chamado Marcolf na corte, cujas piadas eram famosas. Seguindo esse modelo, os reis e príncipes tinham loucos e loucas na corte para entretê-los. Pelo menos a partir do século 14, o bobo da corte, a antítese da sabedoria real, tornou-se institucionalizado, e as palavras irônicas ou críticas desse personagem da vida real eram aceitas. De acordo com a terminologia da época, alguns eram “lunáticos naturais”, ou seja, simplórios (ou aleijados), enquanto outros eram “lunáticos artificiais”, ou seja, bufões espirituosos. Eles receberam apelidos, como Coquinet, na corte dos duques de Borgonha, ou Triboulet, o louco do “bom rei René”. Alguns entraram para a história, inspirando a literatura até o século 19, como Triboulet na França, Will Somers na Inglaterra e Kunz von der Rosen na Alemanha.

AS ROUPAS DO LOUCO

À medida que o louco se expandiu, sua representação se tornou codificada. O personagem se tornou facilmente reconhecível graças ao seu traje heterogêneo (uma expressão de desordem) e seus atributos: a marotte – uma paródia de um cetro com o qual o louco conversa -, os sinos em seu traje e o boné com orelhas de burro e uma crista de galo. Barulhento e exuberante, o louco costuma ser músico em festivais: ele toca a musette ou a gaita de foles, outros instrumentos de sopro ou castanholas. Eles também eram acrobatas e dançarinos. Na corte, sua loucura era contagiosa e se expressava na dança mourisca, em que os dançarinos – inclusive o louco – se transformavam em contorcionistas para obter o prêmio concedido pela dama. 

O louco do carnaval ao século 16 viu a continuação e o apogeu dessa evolução: a figura do louco foi erigida como um símbolo das desordens do mundo.

SÉCULO 16: O TRIUNFO DO LOUCO

Por volta de 1500, a figura do louco tornou-se onipresente na sociedade e na cultura européias. O sucesso de duas obras muito diferentes, mas complementares, O Navio dos Loucos, de Sébastien Brant, depois O Elogio da Loucura, de Erasmus, contribuiu para isso. Em 1494, Brant publicou seu livro em alemão. Ele foi traduzido para o latim e para muitos outros idiomas europeus a partir de 1497. 

Erasmus publicou seu Elogio da Loucura em 1511. Portanto, foi publicado em latim e destinado a uma elite erudita. No entanto, seu livro é muito mais famoso hoje do que o de Brant, porque suas críticas anunciaram as teses da reforma protestante. 

Entretanto, foram as pinturas de Bosch e Bruegel que levaram ao triunfo do louco durante o Renascimento.  

A proliferação de loucos deu origem a vários mitos que pretendiam explicar sua gênese (notadamente com o tema do ovo) e sua disseminação por toda a terra, em particular com a ideia da Nave dos Loucos. Assim como o livro de Brant, a pintura de Hieronymus Bosch, intitulada a Nave dos Loucos pelos críticos modernos é, na verdade, apenas um fragmento de um tríptico desmembrado. A mensagem geral da pintura refere-se ao mundo da loucura, mas também a outros motivos: a pintura dos vícios, dos últimos nãos e a incerteza do destino humano. 

Pieter Bruegel, o Velho, assim como Bosch, às vezes continuava a usar a figura do louco da maneira tradicional. Mas, na maioria das vezes ele também lhe deu um novo valor: o louco ficou em segundo plano e, como testemunha, destacou a loucura da humanidade.

RENASCIMENTO DO LOUCO

Quimeras da Notre Dame, em exposição no Museu do Louvre

Após um eclipse de quase dois séculos, a figura do louco reaparece durante o período romântico.

Os artistas costumam usar os grandes autores do passado, como Shakespeare, para insuflar um sopro de loucura em suas pinturas. Um autor da sua época desempenha um papel igualmente importante, Victor Hugo. Isto ressuscita a figura do louco: em 1831, em Notre-Dame de Paris, com o personagem Quasimodo, eleito “papa dos loucos” pela multidão; um ano depois na peça Le roi s’amuse, com a de Triboulet, bobo da corte de Francisco I e vítima do destino. Esta última obra teve sucesso mundial graças a sua metamorfose em ópera de Verdi com o seu Rigoletto.

Fortalecido por esta herança, mas também nutrido pelo crescente estudo das doenças mentais, o rosto do louco acaba por se identificar com o do artista, debatendo-se com as suas angústias, até com a sua própria loucura.

ALAIN ROUSSEAU tem dois amores: Paris e Brasil. Vive na capital francesa hás 30 anos, mas morou e trabalhou em São Paulo durante oito anos. Nunca mais se desligou do país. Apaixonado por arte e gastronomia, ele é o que os franceses chamam de bon vivant, alguém que gosta de descobrir novidades e que vai trazê-las aqui toda semana.

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